Comentário: Memorial do Convento (1982), de José Saramago.
- Fernanda Camargo
- 18 de nov. de 2019
- 2 min de leitura

O (Palácio Nacional e) Convento de Mafra é, além de um monumento arquitetônico, um símbolo de poder. Para a literatura, é o núcleo de um dos romances mais célebres da obra de José Saramago. Aqui, estamos no contexto de fartura de recursos da monarquia portuguesa, no século XVIII, fruto da exploração do ouro no Brasil colônia.

O arranque da fábula é a ida do rei, D. João V, ao quarto da rainha para mais uma tentativa de gerar a sucessão da dinastia.
Num momento da História em que Estado e Religião caminhavam juntos, D. Nuno da Cunha, bispo inquisidor, leva ao rei um velho franciscano, o qual diz ao monarca que, levantando um convento na vila de Mafra, obteria sucessão. D. João V ordena a construção do convento e a infanta D. Maria Bárbara é gerada.
Apesar do início da obra, a construção monástica é apenas um pretexto para que o narrador chegue ao verdadeiro epicentro da fábula: os protagonistas que Saramago recupera para elaborar uma revisão do discurso oficial - os trabalhadores que ergueram, às custas da própria vida, da própria miséria e do próprio sofrimento, a estrutura megalômana ambicionada pelo rei. Desse modo, a história desenvolve-se em duas linhas: a primeira, composta pela monarquia e pelo alto clero e, a segunda, constituída pelo povo. Esta, apoia-se na trajetória de duas personagens - Baltasar Sete-Sóis, um ex-soldado que perdera a mão esquerda em batalha e Blimunda Sete-Luas, uma mulher capaz de ver o interior das pessoas. A relação amorosa de ambos é extraordinária, de entrega absoluta e imediata, consistente e autêntica.
À margem da sociedade, Blimunda e Baltasar envolvem-se no projeto doutra figura histórica do romance, o padre Bartolomeu Lourenço de Gusmão: a construção de um veículo com a habilidade de fazer os homens voarem - a passarola. Paralelamente à obra caprichosa e vaidosa da monarquia portuguesa, o convento, a passarola é o produto da ciência, do trabalho e do misticismo do homem.
Conduzidos pelo prodigioso projeto da tríade, seguimos com Baltasar e Blimunda a Mafra, onde o narrador nos põe a par das misérias dos trabalhadores, submetidos por estratégias de controle e de medo para a manutenção dos poderes monárquico e clerical. Nesse espectro, está a inquisição.

Se o discurso histórico despreza os seus verdadeiros heróis, Saramago os nomeia e os homenageia:
[...] já que não podemos falar-lhes das vidas, por tantas serem, ao menos deixemos os nomes escritos, é essa a nossa obrigação, só para isso escrevemos, torná-los imortais, pois aí ficam, se de nós depende, Alcino; Brás, Cristóvão, Daniel, Egas, Firmino, Geraldo, Horácio, Isidro, Juvino, Luís, Marcolino, Nicanor, Onofre, Paulo, Quitério, Rufino, Sebastião, Tadeu, Ubaldo, Valério, Xavier, Zacarias, uma letra de cada um para ficarem todos representados [...].
Numa das passagens mais belas do romance, José Saramago eterniza o reconhecimento que defendeu por toda a sua vida: os homens que despendem energia, criatividade e suor são os grandes realizadores da humanidade.
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