O homem, a terra e o mundo - falemos de Miguel Torga
- Fernanda Camargo
- 25 de set. de 2019
- 5 min de leitura
Wanderlust, esta palavra que nos parece tão familiar em nosso tempo, significa, segundo blogs de viagem e posts do Instagram, o desejo de viajar ou de vagar pelo mundo. Vem do Alemão.
Muito antes de ser possível a alguns acumular carimbos no passaporte, Miguel Torga (1907-1995) havia escrito sobre uma curiosa figura, cujos anseios de explorar o mundo eram muito semelhantes aos nossos.
Sem aprofundar-se em reflexões sobre as consequências de explorar mapas e territórios, o escritor português atribui ao ato de viajar algumas de suas características fundamentais: o usufruto da liberdade, a amplitude de pontos de vista sobre o nosso lugar de origem, sobre os destinos que visitamos e sobre as pessoas que nos cercam, além da potencialidade de nos transformarmos a cada nova aventura.

Em "Homens de Vilarinho", conto que integra a obra Contos da Montanha (1941), o escritor português conta a fábula de Firmo, um homem com "anseios de mundo". O narrador inaugura a sua enunciação com uma reunião na igreja de Vilarinho, na qual o padre João divulga a lista dos habitantes que trabalharão para a realização da festa de Nossa Senhora da Agonia.
Ao anunciar o nome de Firmo no topo da lista, gera-se um burburinho no local, pois de todas as almas sobre as quais havia controle, a do protagonista era a mais rebelde. O desenvolvimento do conto traz o regresso do personagem à sua terra. De volta a Vilarinho e pressionado pelo padre, figura religiosa que exerce no texto o comando pelo poder, Firmo decide permanecer junto aos seus. Integra-se às atividades comunitárias e o povo, de um anterior estado de descrença sobre tal resolução, convence-se dela.
Entretanto, Firmo é como "ave de arribação". Embora tenha esposa e origens ali - para onde sempre regressa - ficar significa "lutar como um herói" contra a sua própria natureza de explorador. Assim, às vésperas da festividade que marcaria a sua completa integração ao povoado, o protagonista comunica o padre João da sua partida:
"E Firmo escancarou-lhe a alma:
- Não posso mais, senhor padre João. Embarco amanhã e venho dizer-lhe adeus."
A origem, a terra e o mundo
Adolfo Correia Rocha deixa de existir quando, em 1934, em homenagem a Miguel de Cervantes e a Miguel de Unamuno, dois dos maiores nomes da literatura ibérica, Miguel assim se assume. Torga vem de uma estreita ligação com a vegetação de sua terra natal, São Martinho de Anta (distrito de Vila Real): a urze da montanha. Sacrifica Adolfo Rocha, renasce como Miguel Torga. A literatura de Miguel Torga é fortemente marcada pelo tema da liberdade. Tendo assumido uma atitude artística de resistência frente ao Estado Novo (1933-1974), o regime ditatorial de Salazar em Portugal, o escritor chegou a ser preso no final de 1939 e teve o seu passaporte invalidado após a sua libertação, para que não deixasse o país. O caráter opressor do governo salazarista incidiu, não apenas na sua biografia, mas na sua relação com a arte e com concepções de arte. Membro importante da segunda geração modernista lusitana, o ficcionista participou da organização da Revista Presença com José Régio, Gaspar Simões e Branquinho da Fonseca. Deixa-a pela sua indignação diante da escolha dos presencistas em se afastar de posicionamentos políticos explícitos. Para Miguel Torga, tratar de arte apenas como construção estética significa "passividade" e passividade seria sinônimo de "conivência" com a ditadura. Deste modo, como vemos em "Homens de Vilarinho", serão recorrentes nos textos de Torga a figura de um poder opressor, como percebemos em padre João, o qual tenta assumir as rédeas da vida de todos os habitantes de Vilarinho. O controle é, muitas vezes, corrupto. Aqui, por exemplo, o sacerdote tem uma vida no concubinato: mantendo mulher e filhos, ou seja, as regras criadas pelas instituições de poder não são seguidas por aqueles que as constituem. Apesar da existência dessa força religiosa, haverá sempre brechas para a liberdade de espíritos inquietos e indomáveis como os de Firmo.


Embora o protagonista liberte-se das amarras do poder ao final, nota-se aqui duas características importantes na construção de sua personalidade: a ânsia pela aventura mundo afora e o reconhecimento da terra enquanto origem e alicerce da identidade. Tais elementos são caros à literatura torguiana. Vê-se o espírito cosmopolita, sempre amparado no entendimento de que há uma visceral relação entre o sujeito e a terra. Disso fala ao autor no prefácio à quarta edição de Contos da Montanha, quando os intelectuais portugueses retornavam à pátria após o exílio, durante a ditadura:
(...) Numa época em que tantos portugueses de carne e osso emigraram por fome de pão, exilaram- se eles, lusitanos de papel e tinta, por falta de liberdade. Enfarpelados num duro surrobeco de embarcadiços, lá se foram afoitamente em demanda do Brasil, o seio sempre acolhedor de nossas aflições. E ali viveram, generosamente acarinhados, assistidos de longe pela ternura correctiva do autor. Voltam agora ao berço, roídos de saudades. E não é sem apreensão que os vejo pisar, já menos toscos de aparência, o amado chão da origem. É que muita água correu sob a ponte desde que se ausentaram. Quatro décadas de opressão desfiguraram completamente a paisagem do país. A humana e a outra. Velhos desamparados, adultos desiludidos, jovens revoltados - num palco de desolação. Almas amarfanhadas e terras em pousio. Que alento poderá receber dum ambiente assim uma esperança de torna-viagem? Mas a pátria é um íman, mesmo quando a universalidade do homem, como neste preciso momento, sai finalmente dos tacanhos limites do planeta. Poucos resistem à sua atracção ao verem-se longe dela, seja qual for a órbita em que se movam. Até os seus filhos de ficção. Por mais fortuna que tenham pelo mundo a cabo, é com o ninho onde nasceram que sonham noite e dia. É que só nele se exprimem correctamente, estão certos nos gestos, são realmente quem são. (...)

Certamente, Miguel Torga é um dos representantes da literatura política de resistência, em Portugal. Voltou os olhos de seus leitores para a realidade de seu país e para o Portugal província, não o da metrópole lisboeta. Observa-se, nesse sentido, elementos da caracterização local como essenciais para a caracterização das personagens. Em "Homens de Vilarinho", há a utilização da vegetação como figura que representa o habitante do povoado, aquele "fincado à terra", como vemos na construção de padre João. Para a elaboração de Firmo, contudo, recorre-se à imagem do pássaro - animal para o qual o ninho é importante, mas que se constitui da habilidade de longos deslocamentos. Ao pensarmos no método de criação de personagens neste conto, concluímos que o grande relevo das duas identidades principais (padre e Firmo) é devido aos seus caracteres opostos. Graças ao contraste, as qualidades de Firmo e de seu opositor saltam-nos ainda mais aos olhos. Assim, a esse recurso estético textual, podemos somar outros que fazem do conto de Miguel Torga um texto de muita potência:
1) A reduzida extensão, que pertence à natureza do conto enquanto gênero literário.
2) Um reduzido elenco de personagens,
fazendo com que concentremos toda a atenção nas identidades ficcionais principais.
3) Uma economia temporal,
a qual confere à fábula um aspecto concentrado. Aliada à economia temporal, constatamos a economia de ações - uma vez que a trama, em "Homens de Vilarinho", se desenvolve apenas no conflito principal: a tentativa de fazer com que Firmo permaneça no lugar. Ao contrário do romance, que possui capilaridade e nos permite conhecer conflitos secundários, graças à sua longa extensão, o conto opera pela potencialização do conflito fundamental.
4) O uso do ex-abrupto,
que se constitui pela ruptura da ação no clímax. O ponto alto do conto era justamente o anúncio da partida de Firmo. Ficamos ansiosos por saber sobre os desdobramentos dele. Entretanto, o autor nos coloca diante da possibilidade de preenchermos esse vazio, porque escolhe encerrar a fábula e não nos contemplar com a nossa expectativa.
Todos os elementos acima fazem com que tenhamos uma sensação explosiva ao terminarmos a leitura dos contos de Miguel Torga, são os nascedouros da potência de seus finais. Daí vemos o nascedouro do fascínio que os seus contos exercem sobre nós, leitores: em breves extensões, produzem em nós um mergulho em nossa própria natureza e nos confrontam com universos tão intensos.
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