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"O BANQUEIRO ANARQUISTA" EM DUAS CHAVES DE LEITURA:

  • Foto do escritor: Fernanda Camargo
    Fernanda Camargo
  • 1 de set. de 2019
  • 5 min de leitura

Quando Fernando Pessoa falou em ‘ficções sociais’, em seu conto “O banqueiro anarquista”, não tinha, obviamente, a era Instagram em mente. Referia-se a todas as ordens que contribuíam para a organização social burguesa dos 1900: a religião, o casamento, o Estado, etc.

Porém, esse texto muito nos fala hoje, porque é capaz de revelar as grandes contradições entre o que dizemos ser (ou a imagem que desejamos projetar para os outros) e o que realmente somos. Basta rolar o seu feed por poucos minutos para constatar que os posts feitos pelos muitos perfis da rede destoam da realidade tantas vezes. Disso, dentre outras coisas, fala o conto de Pessoa. Neste texto, propomos outras duas leituras possíveis para ele: ser um tratado político ou ser um tratado sobre a arte.

O título é estranhamento na certa: como pode um banqueiro ser um anarquista? O escritor recorre a uma figura de linguagem para construí-lo: o oximoro. Um oximoro é uma combinação de palavras de sentido oposto, como banqueiro (aquele que acumula capital) e anarquista (partidário do anarquismo, cuja ideologia defende a libertação de poderes como a religião, o Estado e a propriedade dos meios de produção).


A fábula


A fábula desse conto se desenvolve no tempo de uma conversa após o jantar. Trata-se de um diálogo entre um banqueiro, o qual se assume um anarquista, e o seu interlocutor (o narrador, que não tem nome). Utilizando figuras da retórica, o banqueiro argumenta para justificar a sua trajetória rumo ao anarquismo.

Num discurso em tom cínico e repleto de segundas intenções, ele nos confronta com questões ideológicas fundamentais: a igualdade entre os seres humanos, a natureza das revoluções, o contraste entre utopias políticas e realidade, a capacidade do homem de organizar-se em coletividade, sem criar tiranias.


Fernando Pessoa em pintura de Almada Negreiros, de 1954.


Primeira chave de leitura: "O banqueiro anarquista" é um tratado político?


Escrito em Maio de 1922, o conto de Fernando Pessoa foi publicado na revista literária Contemporanea, dirigida por José Pacheco e ilustrada por um amigo de Pessoa e figura fundamental para as reflexões sobre a primeira geração do Modernismo português: Almada Negreiros.

Nessa publicação, o banqueiro anarquista diz ser tomado pelo sentimento libertário do anarquismo, antes de empreender-se como banqueiro, e usa de um recurso discursivo, o storytelling (a contação de histórias), enquanto técnica para promover a adesão de seu interlocutor e a nossa, leitores, àquilo que conta. Revela um passado ativista e enumera os obstáculos encontrados, os quais o impediram de alcançar um anarquismo social através da luta coletiva, conduzindo-no a uma trajetória individual, usando o capitalismo como força motriz para chegar ao anarquismo.

Afirma o banqueiro que os homens são diferentes por natureza. Assim, contraria a ideia de igualdade entre os seres humanos. Segundo ele, tais diferenças nos favorecem ou prejudicam. Imersos na organização social burguesa, aprenderíamos as suas ficções sociais, entre elas a tirania. Ao expor a sua experiência militante, constata não ser possível estruturar um grupo de maneira horizontal, ou seja, no qual todos têm o mesmo poder. Justamente por sermos diferentes e inseridos num modelo social tirânico, sempre haverá homens impondo a sua autoridade sobre os demais:


Retrato de Fernando Pessoa.


"No estado social presente não é possível um grupo de homens, por bem intencionados que estejam todos, por preocupados que estejam todos só em combater as ficções sociais e em trabalhar pela liberdade, trabalharem juntos sem que espontaneamente criem entre si tirania, sem criar entre si uma tirania nova, suplementar à das ficções sociais, sem destruir na prática tudo quanto querem na teoria, sem involutariamente estorvar o mais possível o próprio intuito que querem promover. O que há a fazer? É muito simples... É trabalharmos todos para o mesmo fim, mas separados".

(PESSOA, 1922)


Sumário da revista "Contemporanea" (1922), na qual foi publicado o conto "O banqueiro anarquista".


Ora, se a coletividade não nos conduz a lugar algum, alcançarei o anarquismo individualmente, afirma o banqueiro. Decide, assim, subjugar a mais poderosa das ficções sociais burguesas: o dinheiro. Via práticas de engano, de monopólio e de competição desleal, justifica os seus meios por um nobre fim: a total liberdade em relação às ficções sociais. Nisso, se resume o seu anarquismo.


A interpretação do texto de pessoa como um tratado político vem, sobretudo, do seu conteúdo na fábula: questionar as ideologias e as utopias sociais com argumentos que beiram o absurdo e com a criação, proposital, de um interlocutor servil - que pouco os questiona. Uma reedição deste texto pela Antígona (1981), por exemplo, chega a trazer um prefácio anônimo, no qual Fernando Pessoa é acusado de fascismo. Não compartilhamos de tal perspectiva. Se o conto pessoano é um tratado político, ele o é pela construção de dialéticas, em outras palavras, pelo contraste de polos opostos (ideologia e prática) que nos conduzem à reflexão política: o que é liberdade, o que é anarquismo, o que é o capitalismo e a apropriação de discursos ideológicos contrários em benefício próprio.


Fernando Pessoa caminha pelas ruas de Lisboa.


Segunda chave de leitura: "O banqueiro anarquista" é um tratado sobre a arte?


Em relação à forma literária, o conto de Pessoa é um exercício de método. Veja, trata-se de um texto narrativo, cujo fio condutor é o diálogo, pois os trechos enunciados pelo narrador são brevíssimos. Ora, mas o gênero textual no qual o fio condutor é o diálogo, por excelência, é o drama. Há aqui, portanto, uma ousadia formal: um texto narrativo híbrido.

Se pensarmos no teor absurdo que trazem os argumentos do banqueiro, podemos considerar que talvez a importância do seu discurso não esteja no que ele diz, mas no como ele diz. Deste modo, é possível considerar que há nesse texto uma tentativa de esvaziar o conteúdo enunciado, guiando-nos para a percepção de um método retórico na elaboração discursiva.

Fernando Pessoa utiliza, de fato, figuras da retórica na elaboração das falas do banqueiro. Uma delas, conhecemos por silogismo. Essa técnica, que remete a Aristóteles, constitui a criação de um raciocínio dedutivo através de duas proposições. A primeira delas, chamamos de premissa maior e a segunda, de premissa menor. Da combinação de ambas, resulta uma conclusão. Observemos, por exemplo, a constatação do banqueiro sobre a sua experiência ativista: juntei-me a um grupo militante e notei que sempre seríamos vítimas de tiranos quando estivermos em coletividade (premissa maior); a organização social burguesa já é, por si só, tirânica - trocaríamos uma tirania por outra (premissa menor); não há assim, caminho coletivo possível para chegarmos ao anarquismo (conclusão).

Outra dessas figuras exploradas por ele é o que conhecemos por sofisma. Um sofisma é um argumento enganoso, que tem aparência de verdadeiro. É o que denominamos "falácia". Nesse conto pessoano, ele estaria nos argumentos sobre a eficácia das revoluções nas lutas libertárias.

Definitivamente, aos interessados em construções argumentativas e em retórica, "O banqueiro anarquista" é um exercício analítico enriquecedor.

Além disso, há no conteúdo, um trajeto de libertação individual que coincide com as propostas da geração Orpheu, primeira do Modernismo português: libertar-se das amarras estéticas anteriores e da tradição portuguesa literária (coletividade) e valorizar as idiossincrasias autorais (individualidade).


Ilustração de Almada Negreiros.

"Libertei um. Libertei-me a mim. [...] a liberdade para todos só pode vir com a destruição das ficções sociais.”

(PESSOA, 1922)



Sumário da revista "Orpheu" (1915), marco do Modernismo em Portugal.


Esta leitura permite-nos entender a libertação do sujeito num duplo sentido: a libertação das pressões estéticas e a libertação da heteronímia, peculiaridade fundamental para o estudo da grande obra pessoana. Embora haja três principais heterônimos de Pessoa (Alberto Caeiro, Álvaro de Campos e Ricardo Reis), sabe-se que ele libertou a existência de muitos outros.

Por isso, se numa camada de conteúdo podemos entender "O banqueiro anarquista" como um tratado político; comparando a trajetória do protagonista rumo à libertação individual, chegaremos também a convergências temáticas, quanto à estética literária, entre esse texto e os manifestos da geração "Orpheu". Isso nos conduz ao possível entendimento do conto como um debate sobre a arte. Aliado ao exercício formal feito na composição da narrativa, esta segunda chave de leitura se mostra ainda mais pertinente.

 
 
 

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